Thursday, March 14, 2013

As Naus, António Lobo Antunes

Os Cus de Judas

Quando o rei Dom Sebastião I de Portugal desapareceu aos 24 anos na batalha de Alcácer-Quibir no dia 4 de agosto de 1578, sem deixar herdeiro para o trono, e assim permitir a Espanha um domínio de 60 anos sobre Portugal, criou-se a lenda do Rei Dormente, um rei desejado que puderia salvar o país e os Portugueses. O Sebastianismo tem um papel interessante no libro As Naus do António Lobo Antunes. Do passado do qual não se pode mudar nada, um messias poderia vir para nos salvar, mudando o presente.

As pessoas passadas assim têm um eco no presente, e as principais figuras literárias da Lusitania, mas também navegadores, escritores e heróis (nomedeamente Pedro Álvares Cabral, Luís de Camões, Francisco Xavier, Diogo Cão, Manuel de Sousa de Sepúlveda, Vasco da Gama e Fernão Mendes Pinto) aparecem no seu romance, regressando à metrópole após o 25 de Abril, retornados ilustres das colônias. Em As Naus figuram toda a história do reino, do Descobrimento à descolonização, numa maneira burlesca, onde as personagens famosas não estão reconhecidas, os reis e os duques vestidos de farrapos e interrogados pela polícia.
Apesar de milionário e mui privado de el-rei nosso senhor, que o sentava à sua beira durante os aytos e farsas do ourives Gil Vicente, que lhe aparecia às vezes no bar de bolsos cheios de apontamentos e de versos e escolhia invariavelmente a cabrita mais mal vestida e mais feia que o padroeiro de Setúbal enviara nessa noite, Manoel de sousa de Sepúlveda, que presidia ao conselho fiscal de uma companhia de Seguros, empilhava dólares na Suíça e tratava Afonso de Albuquerque por tu ou por chega aqui ó vice que ainda não te vi as barbas (e o outro levantava-se e aproximava-se, encolhido no gibão com um arzinho submisso), apesar da amizade que fizera numas férias algarvias com o britânico, marido de uma antiga freira de chapelinho ridículo, Martinho Lutero, não lograra comprar a última discoteca do Largo de Santa Bárbara que lhe faltava, uma cave com um respiradoiro à altura dos tornozelos dos passantes, mais húmida e desconfortável do que os subterrâneos das igrejas onde os vampiros põem ovos na alfazema da estola dos padres, com duas ou três deusas a fumarem no escuro, chamando com a brasa do cigarro os clientes que navegavam numa água de trevas sem destino, alegrados pela gengiva desafinada de um acordeão.
As Naus (edição Dom Quixote, 2002, 198 páginas) foi escrito em 1988 por , nascido em Lisboa em 1942.

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